Chega a ser estranho falar disso agora. O tempo passou, e o
vento das mudanças e das alegrias novas levou consigo folhas, poeira, lágrima,
raiva, ressentimento. A lembrança ainda tenho. Nunca desejei ou cogitei
trabalhar ali, até aquela tarde em que o telefone celular tocou e do outro lado
da linha, uma voz masculina me fazia um convite: __ Tenho uma proposta de trabalho que acredito que vá lhe interessar.
Confesso que de imediato não me empolguei, nem mesmo pelo fato de ser uma
empresa transnacional de grandíssimo porte, sonho de muitos profissionais. Mas o
convite vinha bem a calhar: eu estava em vias de encerrar uma parceria de 6
anos no escritório jurídico onde até então eu trabalhava. Caiu-me como uma
luva. A alternativa seria eu montar meu próprio escritório, mas não tinha
recursos suficientes. Eu ganhava dinheiro com certa facilidade... e com a mesma
facilidade gastava. Mas era só dinheiro o que faltava. Faltava-me também
coragem. Erguer e manter sozinha um negócio parecia-me muito difícil. E também
não encontrava uma parceria. O convite era para atuar como advogada aqui mesmo
na minha cidade, na gerência jurídica local. Apresentei minha expectativa
salarial sem nenhum pudor, afinal de contas eu nem fazia questão de trabalhar
lá, e, para minha surpresa, foi aceita. Na hora isso me fez pensar que podia
ter pedido mais ― meses mais tarde, quando eu já entederia melhor as regras de
ascensão na carreira, eu descobriria que ganhava mais do que todos os colegas
da equipe e que já estavam lá há anos. E lá estava eu, “bem empregada”, ótimo
salário, com plano de saúde excelente, plano de previdência privada, bolsa de
estudos para meu filho na melhor escola da capital do Estado, participação nos
lucros e resultados. E sem nenhum brilho nos olhos. Era 2006. O ar era difícil
de respirar ali dentro. As palavras eram cuidadosamente medidas antes de serem
pronunciadas. Proibido falar de quanto se ganha. Relatórios. Revisão do
relatório, outro relatório. Reuniões, muitas reuniões. Ah, sim... e as tais “conference calls”. Aturdida sobre o que
era prioritário no meio daquilo tudo ― e quase tudo me parecia de uma
inutilidade absurda ― tive minha primeira lição sobre o que é prioridade dentro
de uma corporação: o que o seu chefe pedir. Questões jurídicas?
Não eram prioridade. Pelo menos não até significar a possibilidade de perda de
prestígio de algum chefe. Os mais altos graus da hierarquia “exigiam” respeito.
Claustrofobia. Falta de ar. Cuidava de mais de 1.000 ações indenizatórias de
acidentes de trabalho e acidentes ferroviários, de assuntos de direito ambiental
e de direito penal. Eram cerca de 15 contratos com escritórios jurídicos de
primeira linha espalhados pelo país para eu gerir. Metas e Objetivos. Mas na
época eu era muito produtiva, realizava minhas tarefas (inúteis, em sua
maioria, a meu ver) judiciosamente e com presteza e passava ociosamente o resto
do tempo. Criatividade nas alturas, ideias novas para problemas velhos. Eu “me
destacava”. De verdade, era fácil, muito fácil para mim. Se eu discordava da
chefia na análise dos problemas, simplesmente emitia minha opinião de modo
assertivo e sem rodeios. E fazia isso pensando que estava contribuindo para o
esclarecimento das questões, para a solução. Afinal, supunha eu ser paga para isso:
resolver problemas. Erros mortais no mundo corporativo: destacar-se e discordar
do chefe. Não sabia, mas estava fazendo um pouco de tudo que tem de pior para
uma carreira no mundo corporativo. Nunca soube fazer essa tal gestão de
carreira. Olhando para trás, vejo em mim inocência e ingenuidade, que muito
longe de serem qualidades, eram vistas como graves defeitos. Até porque
“ninguém” acreditava que eu fosse realmente daquele jeito. Mentira. A minha
chefe não acreditava. Era minha primeira experiência numa estrutura corporativa
como aquela. Aconteceu que o chefe que me contratou foi para outra empresa e uma
advogada da nossa equipe foi promovida e assumiu a gerência. No início parecia
que tínhamos afinidade: idades próximas, tipos físicos, formação acadêmica etc.
Só aparência. Nossa relação se deteriorou rapidamente. Ela era muito
competitiva. E eu tenho horror à competição. Tudo em mim era ameaça aos olhos
dela: minha competência, meus conhecimentos jurídicos, minha aptidão para
liderança. Até minha aparência. Vocês devem estar se perguntando: o que eu
estava fazendo lá?! Por que não me demitia ou era demitida? Não me demitia
porque acreditava que precisava daquele emprego. Não era demitida porque o
Diretor executivo gostava muito de mim. A deterioração de nossa relação se
acentuou por ocasião do casamento dela: ela me acusava de ter, de propósito, roubado-lhe
a cena. Como eu teria conseguido isso até hoje não sei ― chamar mais a atenção
do que uma noiva é uma proeza, não é mesmo?! A partir daí minha chefe tornou
minha vida um inferno diário. Dia após dia, eram gritos, chamava meu nome aos
berros, passava meu trabalho para estagiário fazerem e as tarefas dos
estagiários para eu fazer, me desqualificava pessoalmente, desmerecia meu
trabalho, negava qualquer participação minha em cursos e treinamentos, marcava
reuniões e não me avisava ― logo, eu me atrasava ou não comparecia. Meu filme
estava queimado. Aumento de salário, promoção?... nem pensar. Nem mesmo uma transferência para
outro setor. “Tudo fechado”. Eu não via saída, apesar de a porta por onde
entrei ter continuado sempre aberta. Frustração e medo. E o sentimento de
injustiça. Sabe o que era o mais louco de tudo isso? Eu não era capaz me ver
como a vítima. Meu sangue estava sendo sugado diretamente de dentro das minhas
veias, eu era pisoteada na cabeça, chicoteada nas costas, minha moral era
aviltada e mesmo assim não sacava a fundura do poço. Estava completamente
equivocada sobre minha condição naquela história. Acreditava estar em igualdade
com a chefe, no controle dos rumos. E como eu não me percebia como a vítima,
que de fato era, eu também, por consequência, não me defendia e nem pedia ajuda.
Eu sofria e me sentia sozinha. E o sentimento de abandono, que já me acompanha
desde que lembro da vida, fincou raiz e botou galho. Faltou-me discernimento. Então,
meu corpo adoeceu. Hemorragia interna: úlcera duodenal. Exame endoscópico:
negativo para h. pylori. Ufa! Por
exclusão, decretou-se: causa emocional. A médica gastroenterologista entendeu
de me encaminhar a um psiquiatra. Eu devia tomar ansiolíticos. Eu não queria,
me achava muito jovem para a tarja preta. Não fui. Procurei um homeopata e com
ele consegui controlar a tensão. Graças a Deus. Também por recomendação médica,
retomei a psicoterapia que muito me ajudava, mas estava longe o dia em que eu
cairia na real em relação a tudo isso, ainda se passariam anos antes desse
momento. Enquanto eu tentava lidar com tudo isso, e ao mesmo tempo esconder das
pessoas ao meu redor o que eu entendia como um fracasso porque me dava uma
vergonha de passar por aquilo, eu também tentava poupar meu filho, porque
julgava que já era bastante para ele lidar com o coração partido pela separação
dos pais, e minha mãe, porque julgava que ela também já suportava peso demais
na vida. Naquela época, havia pouco que eu havia saído de um relacionamento,
então não tinha um companheiro com quem compartilhar e para me apoiar. Então,
sem misericórdia nenhuma de mim mesma (eu me odiava?), eu me impunha a ordem
mais cruel: você tem que ser forte e
tem que dar conta sozinha. Sendo assim, eu não precisava
de nada e nem de ninguém. Quando na verdade eu precisa ser acolhida: __ um colo, um abraço, por favor! ―
gritava meu coração afônico e nem eu me ouvia. Eu estava morrendo lentamente.
Foi então que Deus achando que já era suficiente resolveu botar um fim, porque
se fosse contar comigo para finalizar aquilo, podia esquecer. Eu padecia de uma
total disfunção, inaptidão para enxergar minha fragilidade e “me salvar”. O
Diretor Executivo que me protegia se desligou da empresa em julho e minha chefe
me demitiu sumariamente, sem nem mesmo expor o motivo, no primeiro dia de
agosto do mesmo ano. Os colegas me olhavam em silêncio. Um único que falou em
meu favor menos de 6 meses depois pediria sua própria demissão. Desmoronei. O
gigante de pedra ruiu. Fui dominada por um sentimento de inferioridade, de
carta fora do baralho, de impotência sem limites. Não havia nada que eu pudesse
e nem que eu de verdade quisesse fazer para reverter. E eu não tinha a mínima
ideia de como recomeçar. Mas como eu não me dava o direito de ser frágil,
vítima, fraca, desamparada ― tudo que eu
realmente era naquele momento ― eu me feri a mim mesma mais uma vez, e, sem
respeitar meu luto, fui à luta. Menos de um mês depois eu já tinha um novo
trabalho e um novo lema: o silêncio. Perdi a ingenuidade e espontaneidade.
Entendi que precisava me proteger (consegui com a psicoterapia), pois nem todos
que nos cercam ou cruzam nosso caminho estão a fim de nos ajudar ou de serem
legais conosco. Mas sabe o quê? Era como se, pela milésima vez nada vida (sim,
houve outros episódios dessa mesma natureza), eu tivesse de novo 15 anos pronta
para perder a inocência: fingindo da melhor maneira possível ser adulta, segura
e dar conta de tudo, mas por dentro como uma menininha assustada, sozinha de
noite na escuridão da floresta. O tempo passou, e o vento das mudanças e das
novas alegrias levou consigo folhas, poeira, lágrima, raiva, ressentimento. A
lembrança ainda tenho. A ferida, embora às vezes abra, cicatrizou, não sangra
nem dói mais. E não acho estranho falar disso agora, é mais escala dessa viagem
que trouxe até aqui. Agradeço, perdoo e deixo ir. Harih Om! हरिः ओम्
Leiam também o texto de João Goulart sobre seus sentimentos diante de uma dificuldade enfrentada na vida.
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